O que você sabe e o que não sabe sobre o Alfaiatezinho Valente
vamos discutir sobre a saga “O Alfaiatezinho Valente“, do Chapolin. Gravado em 1978, seu nome em espanhol é “El Sastrecillo Valiente“. A saga estreou no Brasil em 1990, sendo que, das quatro partes, apenas três são exibidas por aqui.
Acredito que todos os nossos leitores conhecem esta saga, mas você sabia que a história é uma paródia de outra? Sabe o que é ‘institutriz’? Sabe com qual tecido fizeram a roupa que só os inteligentes podem ver? Sabe que nesse episódio podemos aprender História e Antropologia? Sabem que dá para associar a transição do Feudalismo ao Capitalismo com a ajuda deste episódio? E sabem o que acontece na quarta parte da saga, não exibida no Brasil? Além de muitas outras curiosidades, confiram!
Nessa saga o Chapolin é um mero apresentador, que conta um resumo do capítulo anterior no início dos episódios e no final convida o telespectador a assistir o próximo capítul, além de participar da história em si em um clipe musical o quarto episódio.
O Vermelhinho diz que muitos conhecem a história, mas não da maneira que ele vai contar. De fato, a história existe: O Alfaiate Valente é um conto de fadas compilado no livro Contos para a infância e para o lar, dos Irmãos Grimm [1].
Na versão chapolinesca dublado pelo MAGA, tudo aconteceu há muitos anos num país chamado Tontolândia, governado na ocasião por um rei (aqui interpretado por Carlos Villagrán) com fama de não ser muito inteligente e mandar cortar a cabeça de quem desobedece suas ordens. No decorrer da saga, este rei apresenta várias burrices: continuar colocando bebida na taça já cheia; molhar a pena na bebida e beber a tinta; assinar decreto com chapéu e recomendar que o alfaiate procure o gigante utilizando sua coroa (sendo que quem a utilizasse como anel seria o gigante).
Por falar em decretos, o rei tinha fama de realizar muitos. Segundo o próprio, de 20 a 30 por dia. Ao longo da saga, o rei publicou os seguintes decretos, em ordem cronológica:
– é estritamente proibido que as pessoas se chateiem
– fica proibido a todos os súditos banharem-se aos domingos
– proibição de os súditos do reino ver o rosto da princesa
– a princesa não pode sair do castelo
– toda pessoa que se encontre ante o rei deverá ter a cabeça descoberta, quem se recusar terá a cabeça cortada
– é mais folclórico as plebeias andarem sujas e despenteadas
– fica terminantemente proibido chover às quartas (ele gosta de cavalgar às quartas-feiras)
– fica terminantemente proibido que haja bandidos no reino
– um decreto exigindo que exista um valente
– (quase) prometendo que as princesas desapareçam
– está estritamente proibido ver o rei em trajes menores
O rei tinha uma filha (interpretada aqui por Florinda Meza), uma princesa chateada por não poder sair do castelo.
O cenário do episódio é descrito oras como país, noutras como reino, comarca, povoado, aldeia… Mas pelas minhas observações parece ser um feudo. Tratam-se de construções medievais, com uma feira livre do lado de fora do feudo. Trata-se de um comércio primitivo, a forma que os burgueses começaram a acumular capital após o período de estagnação econômica dos feudos (que eram baseados na servidão e uma parte de toda produção tinha que ser cedida ao rei, limitando seus moradores de crescerem economicamente).
Esta é a fase de transição feudo-capitalista. O sistema feudal estava em decadência, enquanto ao mesmo tempo o capitalismo – nesta fase comercial, com os burgueses começando a despontar – estava em ascenção. Os comerciantes do episódio vendiam sobretudo frutas, moringas, artefatos de barro e jarros. E esse comércio começava a ocorrer ao mesmo tempo em que a forma de produção era artesanal, com a mesma pessoa dominando todo o processo produtivo de um bem ou serviço. Nesse caso, o mestre-artesão tinha um ajudante, que era seu aprendiz.
O reino seria como uma “federação de feudos”. Nos feudos existia um rei, mas quem realmente mandava era o senhor feudal. O poder era descentralizado, cada feudo tinha seus pesos, medidas, suas formas de pagamento de bens e serviços. Isso dificultava o comércio. Por isso numa fase posterior os burgueses buscaram a centralização do poder, nas mãos de uma única pessoa, o rei, e surgiu o Absolutismo.
Outros personagens são o comerciante (interpretado por Horacio Gómez Bolaños), o artesão mestre (Ramon Valdés) e seu ajudante, o “alfaiatezinho valente” (Roberto Gómez Bolaños). Eles fabricavam tecidos artesanais. Chespirito faz o papel de um empregado atrapalhado, meio que antecedendo o papel que ele faria em La Chicharra. Por aqui ele pregou botas nas calças (achando que seu mestre se referiu a isso ao falar “botões”), furou seu chefe com agulhas de costura e trombou nele com uma tábua de madeira.
Também havia a empregada da corte real, que pega as roupas de uma plebeia (uma das moças que faz a limpeza do palácio) e ajuda a princesa fugir, para dar uma volta nas dependências do reino, como se fosse uma aldeã. A princesa não podia ter relações com pessoas de fora do palácio, que sequer podiam vê-la ou tocar em seus cabelos. O primeiro-ministro (Ruben Aguirre) reconhece: “Tendo passado a maior parte de sua vida encerrada atrás dos muros deste castelo, a qualquer garota encantaria conhecer o mundo, e creio que um disfarce de aldeã seria a fórmula perfeita“.
Em escala bem menor – afinal neste caso a personagem não tinha contato com algumas pessoas, mas tinha com outras, sabia falar, andar e tudo mais – podemos comparar a princesa com o protagonista do filme “O Enigma de Kaspar Hauser“. Este, viviu a maior parte de sua vida longe do contato social, e, quando pôde entrar em contato com outros homens de uma tribo, foi visto como um ser “estranho”, anti-cultural e de hábitos primitivos, até que teve uma reeducação corporal de seus hábitos influenciados pela vida em sociedade.
A princesa interpretada por Florinda desde que nasceu já vivia em sociedade, porém, parte de seu conhecimento de mundo e de si própria foi privado na medida em que ela só podia estar em contato com pessoas pertencentes ao reino. Por isso, ao fugir, ela se mostrou confusa na maneira de agir dianta de diversas situações: não sabia que tinha que se despentear e sujar o rosto para ficar parecida com as plebéias, revelava aos aldeãos ser a filha do rei, mal se assustou com aviso da chegada dos “Três demônios” e não se escondeu deles até que alguém intervisse (e ela queria não aceitar a ajuda, ao que parece ser nem sabia que corria riscos, não se tocou que todos os demais abandonaram suas barracas de comércio e se esconderam).
Isso está relacionado com Sociologia, pois a filha do rei foi privada de seu contato em sociedade (no caso, apenas com a sociedade fora do reino), e com essa falta de contato deixou de desenvolver algumas características (como a capacidade de se proteger do perigo, se relacionar com homens etc) e Antropologia, na medida em que a princesa foi privada de conhecer uma parte do mundo e assim desconheceu a cultura de pessoas diferentes dela. Digamos que “ela só conhecia seu mundo”, o da nobreza.
Diante da situação, a princesa fugiu do palácio para desvendar o mundo lá fora. O primeiro-ministro desconfiou dela ao vê-la disfarçada. Ela ouviu uma conversa de seu pai e se aproveitou do fato dele ter contado que certa vez uma plebeia lhe jogou um balde de água e fez a mesma coisa para poder fugir.
Na aldeia, ela se deparou com os “Três demônios” (Ruben, Carlos e Ramón): ladrões que chegam quebrando coisas e destruindo o comércio local. O alfaiate então salva vida da princesa, que corria riscos com os bandidos. O aprendiz não acredita que ela é a princesa, mas acaba se apaixonando por ela. Em agradecimento por ter salvo sua vida, a princesa dá um beijinho no plebeu, que fica bobo e cai na fonte após o ato.
Há na primeira parte da saga uma piada de duplo-sentido: “você sabe onde está o saco? … A bolsa de couro!!“.
A segunda parte começa com um resumo da parte anterior, sendo que as falas reprisadas foram redubladas.
Os bandidos também bagunçaram o ateliê de tecidos e roubaram o que seria utilizado na confecção de um traje do rei. O artesão se refere ao tecido como fazenda, um tipo de pano de roupa e que, por vezes, de tão vulgar é a expressão usada no vocabulário português, podemos estar perante um sinônimo do próprio tecido [2]. Há aqui uma contradição, visto que o alfaiatezinho chega a se referir ao traje que seria feito deste tecido como “terno” e o próprio mestre-alfaiate também se refere a ele como brocado, um tipo de tecido ricamente decorado, feitos em seda colorida, e com relevos bordados geralmente a ouro ou prata [3].
Para evitar que rei corte sua cabeça por não ser possível fazer a roupa sem o tecido (que fora roubado), o mestre-artesão se aproveita do fato do rei ser “burro” e tenta se safar sem fazer roupa alguma e apresentar ela como um tecido comprado de vendedores do extremo Oriente, com uma particularidade muito especial: somente os inteligentes podem vê-lo. E o rei, para evitar transparecer ser sem inteligência, finge vê-lo.
A princesa vai visitar a aldeia novamente. O rei fica preocupado com o sumiço da filha. Ela continua apaixonada pelo alfaiatezinho, numa espécie de compensações. Para ela, ele era “pobre, nanico, tonto e feio, mas tão bom”. E para ele, ela era “maluca, mas uma maluca linda”.
Então é tocada a canção “Hermano Francisco“. São Francisco de Assis, perto do final de sua vida, escreveu uma cara aberta aos chefes do povo, um cartão que podia ser enviado aos novos governantes. Em espanhol, o começo da carta diz: “A todos los jefes de Estado y los titulares del poder en este mundo, hermano Francisco, vuestro siervo pequeño y humilde, les deseo Paz y Bien.
O SBT cortava esse clipe porque ele não foi dublado e era uma exigência do SBT na época que as musicas fossem dubladas para serem exibidas.
A personagem interpretada por Angelines Fernández é chamada também de “institutriz“. Trata-se de uma palavra em espanhol que significa “preceptora”. A palavra preceptor pode ser utilizada também para designar a pessoa incumbida de acompanhar e orientar a educação de uma criança ou de um adolescente.
Pois bem, a “institutriz” e a princesa fazem um plano, fingem que vão fugir, de maneira que o primeiro-ministro, pensando que entraria no quarto da preceptora, entra na alcova da princesa, algo que lhe era proibido. Por chantagem, a pricesa ficará calada se o ministro não espalhar que a viu com as roupas de aldeã. Já que estamos explicando os termos não tão usuais, alcova quem ouve modão sertanejo conhece. Alcova significa, em casas antigas, pequeno quarto de dormir, ordinariamente sem janelas.
Lembram-se da roupa do rei? O alfaiate vende-o como útil: através dele pode-se saber quem é “tonto” e quem é inteligente (um detalhe que se passou despercebido, no reino de Tontolândia todos os habitantes devem ser denominados como tontos, não apenas os burros). Mas o rei percebe o golpe da roupa invisível. O mestre-artesão e seu aprendiz tentam fugir, quando o alfaiatezinho encontra a princesa, descobrindo então que ela realmente é a filha do rei.
Após receber o pagamento, os alfaites fogem do povoado, para evitar o castigo por terem enganado o rei. O primeiro-ministro e os guardas chegam para castigar os alfaiates, mas os “Três demônios” também aparecem, o que faz com que os guardas fujam e os alfaiates consigam escapar do castigo.
Então, o alfaiate valente consegue matar três moscas com um mesmo tapa. Trata-se de um “link” da paródia com a história original, em que um alfaiate prepara-se para comer alguns doces, mas quando moscas decidem pousar sobre eles, ele mata sete delas com um golpe. Ele faz um cinto que descrever a ação, “matei sete de uma vez”. Inspirado, ele sai pelo mundo para fazer fortuna. O alfaiate acaba conhecendo um gigante, que presume que “matei sete de uma vez” se refere a sete homens. O gigante desafia o alfaiate.
E o gigante aparece na saga do Chapolin também. Ele derruba os demônios, e a população acredita que o autor do golpe foi o alfaiate (que na verdade matou três moscas). O gigante tem 16 metros de altura e a intenção de vir na direção do palácio.
Após várias tentativas de matar uma única mosca e conseguir pegar três ao mesmo tempo, o alfaiate canta a música “No me lo van a creer” (“Não vão me acreditar”)
A quarta e última parte da saga não é exibida no Brasil. O aprendiz continua seu trabalho, um burguês encomenda uma roupa na alfaiataria.
O gigante rapta princesa. O primeiro-ministro conclui que “se o alfaiatezinho foi o único a derrotar os três bandidos, poderá salvar a princsa das garras do gigante.”
Por amor, o alfaiate vai resgatar a princesa. O povo pensa que o gigante construiu sua cabana na parte mais funda do bosque.
Então o rei desconfia: como sua filha estava apaixonada pelo alfaiate se em tese não o conhecia?
O gigante confessa que todos se assustam quando o veem: “Esse problema aconteceu com todos os gigantes que existiram no mundo“. Ele confessa que não quer fazer mal à princesa, pelo contrário, ele sabia que ela vivia trancada no castelo e tinha grandes desejos de conhecer o mundo, por isso a libertou de lá.
O gigante pede a princesa em casamento, que não aceita, pelos fatos (como o tamanho do gigante) e porque seu coração pertence a outro, o alfaiate, que chega para resgatar a filha do rei. Ele pisa nos calos do gigante, que quer bater nele como vingança. Para evitar que o alfaiate apanhe, a rainha promete se casar com o gigante. Ela prefere que aconteça qualquer coisa, menos ver seu amante morto.
O alfaiate coloca uma ratoeira nos pés do gigante, que surpreendentemente não o faz mal alegando que “um gigante que se preze, sempre respeitará a vida de um valente.” Assim sendo, deseja que o canal princesa/valente seja feliz. Eles então se casam e todos da história ficam com um final feliz, com exceção do gigante, que foi tão simpático ao revelar seus desejos de não mais viver sozinho.
Trata-se de uma bela história: boa, engraçada nos momentos que tem que ser assim, com lições e ainda que podemos relacionar com outros conhecimentos para aprender aspectos de História, Sociologia e Antropologia.
No final, Chapolin aparece para cantar “Campeón“.
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